O que eu quis que soubesse

Na janela de sua casa
Vi a fresta, vi o vão
Pela tela, a vi deitada
E lancei-me a contação

De cá, da minha calçada
Eu pintei minha ilusão
Vendo-a assim, tão desarmada
Pus a tinta em minhas mãos

Passeamos por suas salas
Juntos, eu e a solidão
Construímos a sacada
Pomos luz na escuridão

E subimos as escadas
E descemos té o porão
Vendo-a assim, tão desarmada
Não ouvi minha razão

Pois razão nenhuma achava
Era a imaginação
Com as janelas sim serradas
Visitei seu casarão

Adentramos toda a fala
Pé-a-pé, mão-ante-mão
Cada canto se inventava
Pela força da expressão

Certa hora ouvi risadas
Lá no fundo uma canção
Corri tanto a procurá-la
Que perdi a solidão

Fui até o fim da casa
Lá no fim tinha um portão
Com a trava bem fechada
E um escrito feito a mão:

“Bem-me-quer, tem a entrada!
Mal me quer, não entra não!
Essa é a sala mais cuidada,
Pode entrar de pés no chão?”

Me pintei todo de calma
Pra não criar confusão
Pus num canto minhas sandálias
E entrei em seu salão

Uma mesa toda ornada
Com as marcas do artesão
Bem no meio se avistava
Reluzia um clarão

Na parede, já pintada
Paz e amor, fogo e paixão
E o chão em cor brilhava
Feito a brasa do carvão

Todo teto espelhava
O universo, a amplidão
Via eu, ela e o nada
Dentro da imensidão

A olhei ali parada
Feito santa em procissão
Vendo-a assim, tão desmedida
Comovi-me de emoção

Era tanto onde morava
Que perdi-me da razão
vi-me assim, tão desarmado
Que casei-me com a ilusão.

A Flor

Dura no tempo a flor
O tempo que a flor tem que durar
Mas na memória
Permanece a flor

Dentro do olhar o azul
Onde o azul tem que morar
Dentro do céu
Cada azul tem seu tom

Eu quero em teu tempo deitar
E te relembrar de manhã
Mesmo que ao final
Me reste a flor

Deixa no céu o azul
E toda a poesia no olhar
Eterno em meus olhos
ser um momento
seu tom, sua cor

Se de repente não for
Eu juro que não vou me importar.
Nada é passado,
Se o sentido ficou

Dura a cor, Dura o tom
Fica a flor
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Luis Kiari / Torcuato Mariano

Olho d’agua

Um belo rio, um rio que soube
Ganhar corpo com a travessia
E nunca se fez de riacho.
Seus olhos estão cheios dele.

Um rio que se reconhece,
Sabe que tudo é paisagem
– Tudo é passagem –
E não se importa com a imensidão do fim
Pois já se sabe mar.
Mais importa o caminhar.
Ele é sendo.

Isso explica os seus olhos e os olhos explicam isso.

Canção do Fim

Descansar…
Na escuridão
Fazer o sol do tempo cair
No crepúsculo da solidão
Do beco dessa dor
A aurora do meu coração
Há de reluzir
No emudecer da madrugada
A saudade adormece o teu partir
E o galo alvorece um novo ardor
Hei de despertar do adormecer
Moço e sem ti
Pra quê desviar vento do rosto?
Juntos fomos tanto, não há farsa!
Para quê tocar tolo desgosto?
São nos feito laços, não amarras!
Deixar correr cansa o amor
Vai como pena breve
Eu  toco os vestígios teus em mim
Dançar a perda engana o choro
No coro das lembranças
Canção do fim
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Luis Kiari / Caio Sóh