As carruagens

O peito que é
Nunca deixa de ser
Em um comboio de teias ele pulsa um Tum
E espera o Tum do outro peito que lhe entenda
Pra não ser só Tum, e sim, Tum Tum
Quando os comboios de teias entendem a língua da cumplicidade
Não existe descontrole ou descarrilo
Estão tão seguros por pernas, braços e veias
Que é impossível que se partam as teias

Que povo é esse?

Tive a sorte de nascer a mais de mil metros acima do nível do mar
e sem asas saber do sabor das arribeiras e do cheiro da caatinga
desde pequena provava da secura da pele de alguns
e da fartura da alma de muitos que salivavam por natureza…
E por natureza tinham a sorte que comandava a umidade existencial
o norte conflitante deste povo lá de cima
de uns olhos tão sabidos e uma falas tão certeiras,

Lá nunca se sabe de Natal ou aniversários,
só da graça do dia que se tem

Lá nós nunca dormíamos até às dez
e nunca corríamos o risco de perder o trem ou o ônibus ou a esperança

A rota de lá é feita de todo dia e de sol a sol, de seca a seca, de fome
e milagres diários
e de um desejo de chuva tão grande que de tanto rezar
os pinguinhos d’água jogavam-se das nuvens e evaporavam-se no trajeto,
no meio do caminho,
nem viam  a cara do chão, da terra, do solo, da planta e do bicho sedentos

Esse povo meu carrega a poesia na palma dos risos,
nas asas e nos ninhos dos passarinhozinhos
que lhe são alma gêmea, par perfeito, espelho

e assim o engenho da vida vai girando no seu não-saber providencial
que só Deus, as crianças (e os corações dos passarinhos) têm ciência…

( Texto de Eva Rocha – http://eva-rocha.blogspot.com )

A Cidade

A cidade turbulenta

Roda, roda, roda
Roda sem parar
Pra qualquer lugar, roda
Rodam caminhões
Cuspindo fumaça
Rodam passarinhos
Que não batem asas
Rodam viadutos
Na ponta dos pés
Ao som de buzinas
Dançam seus balés
Roda, roda, roda
Pra lá e pra cá, roda
Roda o relógio
Sempre atrasado
Rodam maquinários
Dentro, as engrenagens
Roda o menino
Com os pés no chão
Vendedor de sonhos
Doce de algodão
Roda, roda, roda
Rodam sonhos feitos
De papel picado
Rodam os corações
Dos apaixonados
Roda a roda viva
Da cidade louca
Girando e gritando
Roda, roda, roda

O V da questão

Quantas vidas tem uma vida inteira?
Voltas e voltas, valsas e valsas
Vale, cada virgula, um viver
Velar, a cada vez que vem o novo
E valer o verde vento, e velejar
Valendo-se das velas
Que viram-se ao velho
Vibrando o vigente vigor
Se vinte vinténs, ou vários vasos valiosos
Vão valer as vidas que viram
Só vós, vendo virar a veloz
E vertiginosa viagem
Validará valores verdadeiros

Unidade

Dai-nos, Senhor, a unidade das coisas:

O voar e o pousar juntos
O fazer das formigas
O andar dos grãos

Fazei-nos ser com os seres
O bem que em tudo dá
Dai-nos as cores das rosas
E os amores por elas

Da força nascente dos frutos
Nasçamos!

Misturai-nos, curai-nos
No mercúrio e no bálsamo
No valsar do vento
Espalhai-nos com as folhas

Chovamos juntos
Sobre o quentume da terra
Ervas, perfumes, sementes, humo
Sejamos!