Os operários

Veja lá dois operários
Cada qual com sua lima
Um, de um lado, faz o prumo
O outro, noutro lado, alinha
São de fato entrosados
Mal algum não se arrepara
Um deixa sobrar aqui
O outro, doutro lado, apara
Tão perfeito é o conjunto
Que parecem fazer dança
Fazem infindos zig-zags
Com destrez, desenham trança
Unem, rituosamente
Cedro rígido e encorpado
A um ferro sinuoso
Como se fosse sagrado
Numa sala eqüilátera
Ensaiam o repertório
Mas depois voltam pra casa
Cada qual com o seu próprio
Se um dia não voltarem
Pra unir, cedro e ferro
Numa mesma incoisança
Vida mesmo é assim
O presente faz lembra

Valsinha torta

 Dar a mão é gesto nobre, e saber
É dar afago a si, e não se afogar
Rodopio aqui dentro, virou passo repetido
Valsa torta,um pra lá, um pra cá

O segredo é lacre de não romper
Sentir com os olhos é adivinhar 
Delicadamente e com detalhes
O avesso da valsa que sou

Dar um salto e ver além do que vê
É descobrir-se vivo, e ficar sem ar
Abrir portas e janelas, fechaduras e tramelas
Dar a volta, e volta e meia se achar

Há quem diga que o limite é céu
Que o infinito não cabe no ter
Dedicadamente e com vontade
Descobre-se assim, em um fim de tarde
Infinito, somos eu e você 

                   Mandy Kawa e Luis Kiari 

As carruagens

O peito que é
Nunca deixa de ser
Em um comboio de teias ele pulsa um Tum
E espera o Tum do outro peito que lhe entenda
Pra não ser só Tum, e sim, Tum Tum
Quando os comboios de teias entendem a língua da cumplicidade
Não existe descontrole ou descarrilo
Estão tão seguros por pernas, braços e veias
Que é impossível que se partam as teias

Que povo é esse?

Tive a sorte de nascer a mais de mil metros acima do nível do mar
e sem asas saber do sabor das arribeiras e do cheiro da caatinga
desde pequena provava da secura da pele de alguns
e da fartura da alma de muitos que salivavam por natureza…
E por natureza tinham a sorte que comandava a umidade existencial
o norte conflitante deste povo lá de cima
de uns olhos tão sabidos e uma falas tão certeiras,

Lá nunca se sabe de Natal ou aniversários,
só da graça do dia que se tem

Lá nós nunca dormíamos até às dez
e nunca corríamos o risco de perder o trem ou o ônibus ou a esperança

A rota de lá é feita de todo dia e de sol a sol, de seca a seca, de fome
e milagres diários
e de um desejo de chuva tão grande que de tanto rezar
os pinguinhos d’água jogavam-se das nuvens e evaporavam-se no trajeto,
no meio do caminho,
nem viam  a cara do chão, da terra, do solo, da planta e do bicho sedentos

Esse povo meu carrega a poesia na palma dos risos,
nas asas e nos ninhos dos passarinhozinhos
que lhe são alma gêmea, par perfeito, espelho

e assim o engenho da vida vai girando no seu não-saber providencial
que só Deus, as crianças (e os corações dos passarinhos) têm ciência…

( Texto de Eva Rocha – http://eva-rocha.blogspot.com )

A Cidade

A cidade turbulenta

Roda, roda, roda
Roda sem parar
Pra qualquer lugar, roda
Rodam caminhões
Cuspindo fumaça
Rodam passarinhos
Que não batem asas
Rodam viadutos
Na ponta dos pés
Ao som de buzinas
Dançam seus balés
Roda, roda, roda
Pra lá e pra cá, roda
Roda o relógio
Sempre atrasado
Rodam maquinários
Dentro, as engrenagens
Roda o menino
Com os pés no chão
Vendedor de sonhos
Doce de algodão
Roda, roda, roda
Rodam sonhos feitos
De papel picado
Rodam os corações
Dos apaixonados
Roda a roda viva
Da cidade louca
Girando e gritando
Roda, roda, roda