Minha poesia não está presa a nada
Ela é minha
E eu faço dela
O que ela quiser de mim.
O passageiro
Não são os dias que passam
Somos nós que passamos!
Se os dias passam por nós
Estamos perdendo o tempo
Se passamos com o tempo
Estamos ganhando os dias
…
Da Porta
Trajectória
como é suave saber sua…
O novo
Menino-pipa
Vai menino-pipa.
Seu vento é o sagrado
que ele te sopre :
as dores
as notas
as flores
a paz.
Que ele te leve :
pra perto de mim
pra longe do “eu”
pra casa do existir
que é além do “ser”.
onde me lanço
onde me perco
onde me encontro
onde tudo é dele
onde tudo é pra ele.
vent[r]e sagrado
.
( Luis Kiari e Mandy Kawa )
…Porque tem coisas que não podemos deixar de ler!
E, depois de beber um gole de licor, pousou o cálix, e expôs-me a história da criação, com palavras que vou resumir.
— Senhor, não desaprendi as lições recebidas, disse-lhe. Aqui tendes a partitura, escutai-a, emendai-a, fazei-a executar, e se a achardes digna das alturas, admiti-me com ela a vossos pés…
Satanás suplicou ainda, sem melhor fortuna, até que Deus, cansado e cheio de misericórdia, consentiu em que a ópera fosse executada, mas fora do céu. Criou um teatro especial, este planeta, e inventou uma companhia inteira, com todas as partes, primárias e comprimárias, coros e bailarinos.
Foi talvez um mal esta recusa; dela resultaram alguns desconcertos que a audiência prévia e a colaboração amiga teriam evitado. Com efeito, há lugares em que o verso vai para a direita e a música para a esquerda. Não falta quem diga que nisso mesmo está a beleza da composição, fugindo à monotonia, e assim explicam o terceto do Éden, a ária de Abel, os coros da guilhotina e da escravidão. Não é raro que os mesmos lances se reproduzam, sem razão suficiente. Certos motivos cansam à força de repetição. Também há obscuridades; o maestro abusa das massas corais, encobrindo muita vez o sentido por um modo confuso. As partes orquestrais são aliás tratadas com grande perícia. Tal é a opinião dos imparciais.
Os amigos do maestro querem que dificilmente se possa achar obra tão bem acabada. Um ou outro admite certas rudezas e tais ou quais lacunas, mas com o andar da ópera é provável que estas sejam preenchidas ou explicadas, e aquelas desapareçam inteiramente, não se negando o maestro a emendar a obra onde achar que não responde de todo ao pensamento sublime do poeta. Já não dizem o mesmo os amigos deste. Juram que o libreto foi sacrificado, que a partitura corrompeu o sentido da letra, e, posto seja bonita em alguns lugares, e trabalhada com arte em outros, é absolutamente diversa e até contrária ao drama. O grotesco, por exemplo, não está no texto do poeta; é uma excrescência para imitar as Mulheres patuscas de Windsor. Este ponto é contestado pelos satanistas com alguma aparência de razão. Dizem eles que, ao tempo em que o jovem Satanás compôs a grande ópera, nem essa farsa nem Shakespeare eram nascidos. Chegam a afirmar que o poeta inglês não teve outro gênio senão transcrever a letra da ópera, com tal arte e fidelidade, que parece ele próprio o autor da composição; mas, evidentemente, é um plagiário.
— Esta peça, concluiu o velho tenor, durará enquanto durar o teatro, não se podendo calcular em que tempo será ele demolido por utilidade astronômica. O êxito é crescente. Poeta e músico recebem pontualmente os seus direitos autorais, que não são os mesmos, porque a regra da divisão é aquilo da Escritura: “Muitos são os chamados, poucos os escolhidos”. Deus recebe em ouro, Satanás em papel.
— Tem graça…
— Graça? bradou ele com fúria; mas aquietou-se logo, e replicou: — Caro Santiago, eu não tenho graça, eu tenho horror à graça. Isto que digo é a verdade pura e última. Um dia, quando todos os livros forem queimados por inúteis, há de haver alguém, pode ser que tenor, e talvez italiano, que ensine esta verdade aos homens. Tudo é música, meu amigo. No princípio era o dó, e o dó fez-seré etc. Este cálix (e enchia-o novamente), este cálix é um breve estribilho. Não se ouve? Também não se ouve o pau nem a pedra, mas tudo cabe na mesma ópera…
Amaduressência
Já se pode ver ao longe ela se carregando, trazendo em seus ombros uma saca de si, e uma porção de coragem para o caminho. Ainda irá pesar alguns quilômetros-anos, até que o sumo, a seiva, seque. Ao mesmo tempo que alivia o peso pelo madurecer de tantos grãos de si, também alivia pelo plantar dos grãos. Ela não joga na terra a semente verde de si, espera um tempo de morrer pra se atirar.
[Intertextualidade com o poema Arma-dura, de Mandy Kawa]