Trajectória

Que o mar nos abrace em seu peito imenso

que esse encontro seja suave
como é suave saber sua…
                                         …existência…
                Nascemos rio…                          
                                                               … morremos mar.
                                                                            
      Todo rio nasce…                               
      e começa a andar                                                                    
      não com o mesmo fluxo                                         
      não com o mesmo curso                                  
                                …todo rio é um…                       
                                                             …mas o mesmo mar.
E quem quiser atravessar em poesia
prepare os braços e o fôlego
Pois além de profundo
um rio poético
é inquieto

Menino-pipa

Vai menino-pipa.
Seu vento é o sagrado
que ele te sopre :
as dores
as notas
as flores
a paz.
Que ele te leve :
pra perto de mim
pra longe do “eu”
pra casa do existir
que é além do “ser”.
onde me lanço
onde me perco
onde me encontro
onde tudo é dele
onde tudo é pra ele.
vent[r]e sagrado
.
                   ( Luis Kiari e Mandy Kawa )

…Porque tem coisas que não podemos deixar de ler!

A Ópera
Já não tinha voz, mas teimava em dizer que a tinha. “O desuso é que me faz mal”, acrescentava. Sempre que uma companhia nova chegava da Europa, ia ao empresário e expunha-lhe toda as injustiças da terra e do céu; o empresário cometia mais uma, e ele saía a bradar contra a iniqüidade. Trazia ainda os bigodes dos seus papéis. Quando andava, apesar de velho, parecia cortejar uma princesa de Babilônia. Às vezes, cantarolava, sem abrir a boca, algum trecho ainda mais idoso que ele ou tanto; vozes assim abafadas são sempre possíveis. Vinha aqui jantar comigo algumas vezes. Uma noite, depois de muito Chianti, repetiu-me a definição do costume, e como eu lhe dissesse que a vida tanto podia ser uma ópera como uma viagem de mar ou uma batalha, abanou a cabeça e replicou:
— A vida é uma ópera e uma grande ópera. O tenor e o barítono lutam pelo soprano, em presença do baixo e dos comprimários, quando não são o soprano e o contralto que lutam pelo tenor, em presença do mesmo baixo e dos mesmos comprimários. Há coros numerosos, muitos bailados, e a orquestração é excelente…
— Mas, meu caro Marcolini…
— Quê?…

E, depois de beber um gole de licor, pousou o cálix, e expôs-me a história da criação, com palavras que vou resumir.
Deus é o poeta. A música é de Satanás, jovem maestro de muito futuro, que aprendeu no conservatório do céu. Rival de Miguel, Rafael e Gabriel, não tolerava a precedência que eles tinham na distribuição dos prêmios. Pode ser também que a música em demasia doce e mística daqueles outros condiscípulos fosse aborrecível ao seu gênio essencialmente trágico. Tramou uma rebelião que foi descoberta a tempo, e ele expulso do conservatório. Tudo se teria passado sem mais nada, se Deus não houvesse escrito um libreto de ópera, do qual abrira mão, por entender que tal gênero de recreio era impróprio da sua eternidade. Satanás levou o manuscrito consigo para o inferno. Com o fim de mostrar que valia mais que os outros — e acaso para reconciliar-se com o céu —, compôs a partitura, e logo que a acabou foi levá-la ao Padre Eterno.

— Senhor, não desaprendi as lições recebidas, disse-lhe. Aqui tendes a partitura, escutai-a, emendai-a, fazei-a executar, e se a achardes digna das alturas, admiti-me com ela a vossos pés…
— Não, retorquiu o Senhor, não quero ouvir nada.
— Mas, senhor…
— Nada! nada!

Satanás suplicou ainda, sem melhor fortuna, até que Deus, cansado e cheio de misericórdia, consentiu em que a ópera fosse executada, mas fora do céu. Criou um teatro especial, este planeta, e inventou uma companhia inteira, com todas as partes, primárias e comprimárias, coros e bailarinos.
— Ouvi agora alguns ensaios!
— Não, não quero saber de ensaios. Basta-me haver composto o libreto; estou pronto a dividir contigo os direitos de autor.

Foi talvez um mal esta recusa; dela resultaram alguns desconcertos que a audiência prévia e a colaboração amiga teriam evitado. Com efeito, há lugares em que o verso vai para a direita e a música para a esquerda. Não falta quem diga que nisso mesmo está a beleza da composição,­ fugindo à monotonia, e assim explicam o terceto do Éden, a ária de Abel, os coros da guilhotina e da escravidão. Não é raro que os mesmos lances se reproduzam, sem razão suficiente. Certos motivos cansam à força de repeti­ção. Também há obscuridades; o maestro abusa das massas corais, encobrindo muita vez o sentido por um modo confuso. As partes orquestrais são aliás tratadas com grande perícia. Tal é a opinião dos imparciais.

Os amigos do maestro querem que dificilmente se possa achar obra tão bem acabada. Um ou outro admite certas rudezas e tais ou quais lacunas, mas com o andar da ópera é provável que estas sejam preenchidas ou ex­plicadas, e aquelas desapareçam inteiramente, não se negando o maestro a emendar a obra onde achar que não responde de todo ao pensamento sublime do poeta. Já não dizem o mesmo os amigos deste. Juram que o libreto foi sacrificado, que a partitura corrompeu o sentido da letra, e, posto seja bonita em alguns lugares, e trabalhada com arte em outros, é absolutamente diversa e até contrária ao drama. O grotesco, por exemplo, não está no texto do poe­ta; é uma excrescência para imitar as Mulheres patuscas de Windsor. Este ponto é contestado pelos satanistas com alguma aparência de razão. Dizem eles que, ao tempo em que o jovem Satanás compôs a grande ópera, nem essa farsa nem Shakespeare eram nascidos. Chegam a afirmar que o poeta inglês não teve outro gênio senão transcrever a letra da ópera, com tal arte e fidelidade, que parece ele próprio o autor da composição; mas, evidentemente, é um plagiário.­

— Esta peça, concluiu o velho tenor, durará enquanto durar o teatro, não se podendo calcular em que tempo será ele demolido por utilidade astronômica. O êxito é crescente. Poeta e músico recebem pontualmente os seus direitos autorais, que não são os mesmos, porque a regra da divisão­ é aquilo da Escritura: “Muitos são os chamados, poucos os escolhidos”. Deus recebe em ouro, Satanás em papel.

— Tem graça…

— Graça? bradou ele com fúria; mas aquietou-se logo, e replicou: — Caro Santiago, eu não tenho graça, eu tenho horror à graça. Isto que digo é a verdade pura e última. Um dia, quando todos os livros forem queimados por inúteis, há de haver alguém, pode ser que tenor, e talvez italiano, que ensine esta verdade aos homens. Tudo é música, meu amigo. No princípio era o , e o  fez-se etc. Este cálix (e enchia-o novamente), este cálix é um breve estribilho. Não se ouve? Também não se ouve o pau nem a pedra, mas tudo cabe na mesma ópera…
[ Capítulo de Dom Casmurro – Machado de Assis]

Amaduressência

Já se pode ver ao longe ela se carregando, trazendo em seus ombros uma saca de si, e uma porção de coragem para o caminho. Ainda irá pesar alguns quilômetros-anos, até que o sumo, a seiva, seque. Ao mesmo tempo que alivia o peso pelo madurecer de tantos grãos de si, também alivia pelo plantar dos grãos. Ela não joga na terra a semente verde de si, espera um tempo de morrer pra se atirar.

[Intertextualidade com o poema Arma-dura, de Mandy Kawa]

Os operários

Veja lá dois operários
Cada qual com sua lima
Um, de um lado, faz o prumo
O outro, noutro lado, alinha
São de fato entrosados
Mal algum não se arrepara
Um deixa sobrar aqui
O outro, doutro lado, apara
Tão perfeito é o conjunto
Que parecem fazer dança
Fazem infindos zig-zags
Com destrez, desenham trança
Unem, rituosamente
Cedro rígido e encorpado
A um ferro sinuoso
Como se fosse sagrado
Numa sala eqüilátera
Ensaiam o repertório
Mas depois voltam pra casa
Cada qual com o seu próprio
Se um dia não voltarem
Pra unir, cedro e ferro
Numa mesma incoisança
Vida mesmo é assim
O presente faz lembra

Valsinha torta

 Dar a mão é gesto nobre, e saber
É dar afago a si, e não se afogar
Rodopio aqui dentro, virou passo repetido
Valsa torta,um pra lá, um pra cá

O segredo é lacre de não romper
Sentir com os olhos é adivinhar 
Delicadamente e com detalhes
O avesso da valsa que sou

Dar um salto e ver além do que vê
É descobrir-se vivo, e ficar sem ar
Abrir portas e janelas, fechaduras e tramelas
Dar a volta, e volta e meia se achar

Há quem diga que o limite é céu
Que o infinito não cabe no ter
Dedicadamente e com vontade
Descobre-se assim, em um fim de tarde
Infinito, somos eu e você 

                   Mandy Kawa e Luis Kiari